Eucanaã Ferraz - em dez Poemas

SAUDADE

Tarde a noite,
ensaio poemas a ti.

Desisto, exausto
pelo trânsito de tantas palavras.

As flores do lençol se abrem
e o silêncio escorre como um rio.

Liberto-me da tua imagem.
Amo-te

e nada mais é preciso
para que o tempo passe.

Eucanaã Ferraz nasceu no Rio de Janeiro, em 1961.

Poeta, publicou:
Livro Primeiro (Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1990),
Martelo (Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997),
Desassombro (Famalicão, Portugal: Quasi Edicões, 2001)
Desassombro (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2002), prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Biblioteca Nacional.

Tem poemas publicados em revistas especializadas (Brasil, França e Portugal).
Participou da antologia Esses poetas - uma antologia dos anos 90, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda (Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998).

Participou de várias encontros de poetas, entre eles a I Bienal Internacional de Poesia de Faro, Portugal, 2001; e o II Encontro Internacional de Poetas na Ilha de Porto Santo, 2002 (Região Autônoma da Madeira, Portugal).

Professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde obteve título de mestre com a dissertação Drummond: um poeta na cidade, em 1994, e se doutorou com a tese Máquina de comover: a poesia de João Cabral de Melo Neto e suas relações com a arquitetura, em 2000.

É membro da Cátedra Jorge de Sena para estudos literários Luso-Afro-Brasileiros, ligada à UFRJ e à Fundação Calouste Gulbenkian(Portugal), que, entre outras ativiades ligadas ao ensino e à pesquisa, publica a revista Metomorfoses.

PASSEIO

Na entrada do cinema
o drops pode ser misto ou de hortelã.
O misto tem gosto de frutas,
o de hortelã de hortelã.

As pessoas são muitas pessoas.

Dentro do cinema,
quanto tudo é escuro,
são todos anônimos
e mesmo em inúmeros,
assim como são,
ficam uma só pessoa,
nos escuro,
como se não fosse ninguém.

Eucanaã Ferraz
(Livro Primeiro - Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1990)

INICIAÇÃO

Conheço o primeiro livro de poemas:
Eu,
de Augusto dos Anjos.

Meu pai o tem
entre tratados de odontologia,
sem capa, velho,
enferrujado.

Livro misteriosíssimo,
no qual a morte é o superlativo
síntese de tudo,
absoluta como minha preguiça
de ir ao dicionário decifrar vocábulos.

Eucanaã Ferraz
(Livro Primeiro - Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1990)

O OVO

O ovo é seu próprio ninho,
ele próprio morador e casa
pilotis e teto,
de si mesmo habitante e arquiteto.

Eucanaã Ferraz
(Livro Primeiro - Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1990)

PARTIDA

Guardem minha esperança
longe de mim,
que vou apodrecendo
dentro dos dias.

Como eu dizia, tomem conta
da alegria, que ficou intacta
na partida, como um quadro
infinitamente delicado.

Eucanaã Ferraz
(Livro Primeiro - Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1990)

OUTONO

Na terra de Withman,
conheci o outono
- o rosto incendiado do outono.
Quando viver e morrer
são a mesma fagulha
em cada folha.

Eucanaã Ferraz
(Martelo - Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997)

PAISAGEM PARA ANNA AKHMÁTOVA

O corpo, ainda corpo,
sabe de cor
a dor. Dizer adeus,
carpir, esconder,
bater palavras contra o muro.
Ruas de São Petersburgo
sob a neblina - o corpo
sabe de cor
onde se morre.
Mas, por entre o estridor
de soldados e funcionários,
cava uma saída:
o próximo poema
(promessa de delicadeza e silêncio)
- ouve cantar uma cereja.

Eucanaã Ferraz
(Martelo - Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997)

GIOVENTÙ

Um modo de olhar
- de frente - o sol.
A palavra desembainhada, sempre.
E esta beleza, a mais aguda:
não saber que
nasceu anteontem
e morrerá menina - a pressa
dos incêndios,
a insônia das estátuas.

Eucanaã Ferraz
(Martelo - Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997)

PARA MANUEL BANDEIRA

Também é o beco
o que vejo.
Mas adivinho a Glória,
a baía, o chão do horizonte.
E sei que,
no escuro,
o bico de um barco me olha.

Eucanaã Ferraz
(Martelo - Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997)

MAR MÍNIMO

Grandes são os marinheiros e os poetas
que fazem caber em seus versos
a glória de horizontes
inventados ou vividos e que,
em grandíloquo e corrente estilo,
erguem cidades magníficas,
domam línguas, contam-nos pélagos e obeliscos.
Mas que fazer da escama
que sobrasse após os mares,
agarrada à roupa mais que
Veneza ou Viena à memória?
Escutai: é nessa minúscula opalina
que muitos sabem o poema
- mais duas ou três palavras
e o martelo certo de fazê-lo.
Rotas magníficas, não mais,
nem quantas as maravilhas
(e cessem com elas os iluminados que contam
de terras por si mesmas lavradias).
O mar pode ser isto: o ar
dentro da concha. Dentro:
o sargaço, o barco, o sargo,
a enseada. Onde poderá ser mais belo
e largo? A onda bravia
sobre um grão de mostarda.

Eucanaã Ferraz
(Martelo - Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997)