João Ayres - em dez Poemas

Poema 1

Há um jeito de entortar
Com a alma estas coisas que digo
Este jeito vem de dentro
Sem lugar onde as coisas se fazem
Como o escuro do escuro que lateja no além
Nas mornas palavras que vão abrindo o que resta desta hora
Singrando o oceano do desterro em compasso suicida
Uma a uma como um rastro que se perde na memória
Estilhaçada à noite por um tiro de canhão.

João Ayres é poeta, contista e ensaísta. É também compositor de samba de raiz.
Conhecido por sua paixão pela escrita, revela uma profunda inspiração pelos sentimentos humanos. Consegue sugar a dor, o ódio, a sensação de derrota, o sofrimento da perda, a desvalorização do próximo, a solidão e o medo da morte, do fundo da alma de seres que se revelam não como personagens secundários, mas como entidades humanas desconhecidas por todos mas reconhecidas por ele.
As muitas máscaras caem por terra quando lemos João Ayres.
A angústia cria corpo e forma chegando a angustiar o leitor mais desprevenido. Ler João Ayres é um exercício, um verdadeiro laboratório sobre a existência; um momento de reflexão com náuseas, dores, desânimo ou alívio. Dissecar o ser e encontrar a alma parece sempre o seu objetivo.
Assim é João Ayres: poeta, contista, ensaísta e também compositor...

por Isaura Ladeira

2

Tenho poucas palavras em tudo que escorre
Um silêncio de coisa morta me arrebata
Caminho por aí como um resto de sangue pisado no asfalto
Próximo à urina dos postes e à solidão de becos escuros.

Minha sina é dizer o pouco daquilo que não sei
E então definho como um tanto de ossos combalidos
Vazio em vazio acordo como se bocejasse o meu fim
Insano como a noite que me envolve indiferente.

João Ayres

3

procuro o interior dos mortos
As origens se perdem quando e onde nada se sabe
As verdades se ocultam numa cova rasa até o final dos tempos
Jamais pude entender o que me diziam os loucos
O vazio e a forma que rangiam como correntes em minha alma.

João Ayres

4

Nasci e cresci e morri sabe-se lá onde
Assim pude viver como um louco qualquer
Fui ninguém em plebeu miserável
Chefe de estado em assassino monstruoso
Imperador cruel e indiferente por muitos anos
Branco, negro, amarelo ou vermelho
Nasci e cresci e morri sabe-se lá onde
Nas trevas onde os mortos se desconhecem.

João Ayres

5

Queria a todo custo sair sem rosto. Era um homem estranho, passava pelas coisas como se não fosse. As ruas vazias cresciam em sua alma. Procurava incessantemente seu longe. Os nomes pesavam em seus ombros como os murmúrios de um louco qualquer. O dia ensolarado em pleno inverno no seu extremo de estar a um fio do que quer que fosse. Tinha o hábito de não completar o que dizia. Era como se estivesse diluído em si mesmo. Naturalmente indecifrável.
Sua mente correndo de um lado a outro ou talvez correndo sem lado algum. Queria a todo custo sair sem rosto. Encontrar o nada na esquina do fim do mundo para ali estar como uma sombra.

João Ayres

6

Eu não venho de lugar algum
Já enchi esta pia de sangue
Derramado enquanto dormia
O sono inquieto dos proscritos
Nesta rua que se esconde
Como o vento no final do mundo
Para longe onde me desintegro
Como quem abraça um adeus
Estes gestos que procuram
As reentrâncias do acaso
Que bate à porta dos mortos
Para abrir o amanhã
Repleto de dores e fendas.

João Ayres

7

Falo sempre em tons de nada
Para não mais ser ouvido por quem quer que seja
Perdi o rumo ao esconder o tempo na gaveta
Na palavra espremida sem lugar em minha alma.

Fui andando sem andar até não ser mais ninguém
Indefinido em qualquer um em portas e janelas afins
Chutando pedras na calçada para que tudo então não passe
De um tanto de coisa alguma que arde e queima no além.

João Ayres

8

A solidão me lacera no escuro deste quarto
E eu sangro a incerteza deste dia frio e cinzento
A morte invade agora minha alma em pouco a pouco
E eu me perco no abandono de ruas e becos escuros.

O tempo devora minha sina de não ser
Nem menos no que resta em todos os restos e nada mais
Já perdi muito tempo a procurar palavras
Que rangiam em minha alma acorrentada nas sarjetas.

João Ayres

9

Eu ando por aí
Com os órgãos na gaveta
À procura de um lugar
Para me esquecer do que não sou
Cansado como toda e qualquer palavra fria
Que descreve movimentos inertes
Debruçado no precipício
Enfraquecido de incertezas.

Eu ando por aí
Com os órgãos na gaveta
Que sucumbem na manhã seguinte
Como um prisioneiro enforcado
Na praça na qual ninguém
Esteja a desviar o curso dos rios
Para assim melhor entender
O que não é dito pelas águas.

João Ayres

10

Não há em minha alma nada que agora escorra.
O pensamento ocupa seu lugar na estante imóvel quando morro para o mundo.
Leio muito mais quando nada almejo.
Um pouco de tudo quando encontro esta minha angústia de dias infindáveis sem ninguém.


Meu nome era este quando pensei em não ser apenas este substantivo próprio.
Mais tarde resolvi abrir a mente ao que então se insinuava.
Contornos e formas habitavam meus pesadelos noturnos quando roçava o final das coisas.
Foi assim que me transformei em fumaça de cigarro numa hora distante e fria.

João Ayres