Euza Noronha - em dez Poemas

Ecos do silêncio

solos de guitarra flamenca
morrem no ar
sementes regadas a rum
germinam no solo

do lado de cá do espelho
a bela adormecida
embebeda-se de sonhos
e dedilha alucinadamente
o fio da navalha

Euza Noronha é Professora e consultora cooperativista, tem participação em diversas antologias literárias, reside em Lavras/MG.

Ânua

escoltado por abelhas africanas
o ano se despede

das intenções melíferas ficam:
- uma pedra no caminho
- um poema inacabado
- um barco furado
- um presente no escuro

e todos os sonhos de navegantes à deriva

pergunto aos jornais
sobre esperança
respondem-me com serena insensibilidade
a pedra no telhado de vidro,
a revolta das vísceras,
o enjôo dos dias,
a imparcialidade do relógio
em bocas de lixo e beijos na boca

mas insisto em ver
com os olhos dos sonhos

haverá novas horas
de um mesmo relógio
que à maneira dos esperançados
beijará o primeiro segundo
soletrando estrelas de um dia primeiro

e apesar das incontáveis picadas
da mordaz e histriônica colméia
reinventaremos o mel

Euza Noronha

desejos III

numa margem
flor pubescente
noutra margem
haste chamejante
no meio
a ponte (suspensa) do desejo

(quando a travessia florescerá
este mosaico de vazios?)

Euza Noronha

Espelhos

de um lado:
a boca
-sacra-
abrindo-se em agudo carnal

de outro lado:
as pernas
-prostitutas-
esperando em noventa graus

de cima:
o corpo
-pagão-
irrompendo desejos ciganos

de frente:
os olhos
-diabéticos-
sonhando lágrimas de mel

(quatro reflexos
numa taça de vinho:
hora de beber o amor)

Euza Noronha

um quase bucolismo

laranjeiras
goiabeiras
mangueiras
e passarinhos
em onomatopéia outonal

frutas no chão
adubando vaidades

nos olhos compridos
do garoto
o catecismo:
a terra é de deus

em algaravia de zumbidos
a cerca vai desmentindo:
é
do
diabo
do
dono

Euza Noronha

pas de deux

na dança das nuvens
te recebo galáctico
navegando minha boca

como se fossem eternos
nossos beijos elétricos

na dança do desejo
te recebo fálico
avermelhando meus sinais

como se fosse cálice
bêbado do teu vinho

e ao som de blues
embriagamos amor
eletrizando nossa taça

Euza Noronha

fuga

pedem para eu ir
quero voltar

ou nem isso

quero fugir das amarras de onipresença
e embarcar olhos na polissemia da língua

enrabichar coração numa laçada sem nó
e embrulhar a vontade num rio de preguiça

só não quero ter
que ir
que vir
que ser

Euza Noronha

presença

não sei se vem da tela
ou se apenas nasce em mim

sei que o dia me azuleja
sei que a noite me enlua
sei que a aurora me acende

quando sinto teus vermelhos
brotando na minha rua

Euza Noronha

Lua cheia em dois atos

no sertão
a sede emudece a voz
e a lua ilumina a peste
espreitando o golpe final

na rua
a lua brilha matreira
em pupilas dilatadas
pela lâmina do punhal

Euza Noronha

Deserto

face mergulhada
em correntezas do passado
abro frestas na memória:
mil e uma tempestades
dos hormônios adolescentes

sonharam no corpo
as areias do deserto
e seu Sheik de Agadir

das lembranças
emerge o tempo e sua razão:
só sente a aridez
quem nunca se fez oásis

Euza Noronha