Vieira Calado - em dez Poemas

Levantar das sombras

Levantemos das sombras a poeira inerme,
as espigas do trigo, os sons imperceptíveis
que vêm da terra, nas ondulações do tempo,
a límpida, ligeira madrugada das palavras.

Levantemos as sombras, o acto redutor
de saber um anfíbio a olhar inquieto o sol
e sigamos o perfil mágico da montanha,
uma linha ao acaso escrita sobre o chão.

Vieira Calado nasceu em Lagos - Portugal.
Entre 1967 e 1977 viveu na Inglaterra e , depois, na França
Tem uma vasta obra publicada.
Vive em Lagos.
Poemas extraídos dos livros: Transparências e Terrachã ( AJEA Edições )

Aqui tudo é silêncio

Aqui tudo é silêncio entre estas árvores
que assobiam em silêncio.

Tudo é sereno como a distância,
a abstracta viuvez dum musgo.

Aqui me atenho, hoje, no fugas momento
das seivas que iluminam o frio do tempo

neste dilúvio perecível devaneio
da eterna ausência e essência inerte.

Vieira Calado

O caminho

Descobre-se o caminho pelo verde das árvores
pela toca onde hiberna o réptil,
uma aldeia nua num deserto
de árvores do deserto.

Sobe-se pelas suas vertigens,
o lugar onde colocamos o impulso do sangue,
as aranhas que temos no sítio da alma.

Por fim assentamos a flor dos pés na terra
para lermos, na obscuridade, sobre o chão,
o ruído de todas as coisas.

Vieira Calado

Aguarela amarela

Coabitar com o barro
e seus objectos inverossímeis

roer a maçã do tempo

como um lamelibrânquio sorriso
neolítico

de pedra

irreversível.

Vieira Calado

Tudo é princípio

Tudo é princípio
sem fim
na melancolia das formas
que rompem o ar,
ao ar pertencem
e o alimentam.

São como lâminas
relâmpagos
que apontam o chão
e o despertam
rumo à sereníssima
e perene
irrepetível
recta das estrelas.

Vieira Calado

Desconheço os livros sagrados

Desconheço os livros sagrados do tempo
helicoidal do cosmo, não tenho a vocação
dos gelos eternos dos altos cumes,
mas sou dono duns olhos
e ouço ainda a música inextinguível
que enche de júbilo os momentos íntimos,
num pequeno gesto incansável
aberto ao prodigioso aroma
dum abraço entre os protoplasmas vivos,
desenhados para conter o sonho.

Vieira Calado

Passam as horas e eu passo

Passam as horas e eu passo.
Não as reconheço nem nelas me reconheço
nesta melancolia cruel das formas,
com suas cores violentas, violetas,
as imagens que batem na memória
destes olhos mágicos de luz.

Passo por aqui em silêncio
restituído de lábios virgens, de viagens
que nunca terei feito, que apenas imagino
e que se abrem à nudez das minhas mãos

como a um baú velho de séculos
vazio de murmúrios que já teve.

Vieira Calado

É esta substância

É esta substância que trago
nos olhos nas veias do caminho
porque sou feito de astros
pó de estrelas vácuo
e vazio me perpetuo
porque tenho em mim o fogo
que inunda a alma
ou a vida
ou havida memória
dos que foram.
E por isso resisto
pelo silêncio
que arde
e se multiplica
no espelho dum coração que bate
habitado pela luz.

Vieira Calado

Pelo caminho

Pelo caminho
deixo
o destino:

cores de mil cores
paixões
amores

que florescem
voam
arrefecem

e que no fim

fazem o pó
do universo

e de mim.

Vieira Calado

Quando me ausentar

Quando me ausentar direi os nomes
de todas as essências, as cores inscritas
ao longo da estrada imóvel. Indulgente,
irei desenhando as formas do repouso,
o ouro e a prata do pôr do sol morrendo
sobre as árvores da montanha alta,
um redemoinho de pura água refazendo
em água o limbo deslizante do rio.

E gritarei a minha infinita gratidão
pela geometria das distâncias vãs
que alentaram o meu sangue para o vazio
que enche de ar, o ar que respiramos.

Vieira Calado