Cairo Trindade - em dez Poemas

Memorabilia


guardam-se em memorandos os quês, os quens, os quandos.
entre flashes perdidos no tempo, desenha-se incerto esboço:
sonhos, sombras, rostos, nomes, toques, gostos.
recriam-se as cenas, os planos-seqüência.

carrega-se nas tintas, apagam-se alguns traços,
ganham vida personagens. vestem-se as imagens,
engendrando gestos possíveis da engrenagem.
congelam-se momentos e se auscultam cérebro, coração e células.

abre-se o foco ao máximo e se deixa ir o pensamento em liberdade pela página,
pela mão, por improváveis cenários, até alçar vôo nas asas do imaginário.

consultam-se agendas antigas, velhos álbuns de retratos,
cartas extraviadas, vídeos, vestígios velados nos desvãos do esquecimento.

revela-se, quadro a quadro,
o abismo entre memória e passado.

Cairo Trindade Tem quatro livros de poesia publicados, participa de várias antologias; teve duas peças de teatro encenadas e atualmente prepara o próximo livro.
É copydesk e colaborador da Agenda da Tribo (São Paulo).
Ministra oficinas literárias há mais de 15 anos.

Celebração

hoje é sempre melhor
do que ontem,
porque hoje é hoje,
esta coisa mágica,
única, surpreendente,
que se acaba de repente.

hoje é melhor
do que amanhã,
porque hoje é hoje
e estamos vivos
e plenos de tanto,
até não se sabe
como e quando.

hoje é sempre
melhor que sempre,
porque o hoje foge,
amanhã é um mistério
e ontem é só memória,
história, já era.

hoje é sempre
o maior presente,
porque a vida é agora,
esta hora de som
e luz e festa,
e este instante é tudo
o que nos resta.

Cairo Trindade

Transbordamento

a inspiração às vezes
cai, às vezes, ai,
nem bem vem, passa
perto e, na hora, vupt,
voa, vai embora.

como a vida que se esvai,
um dia esta pálida página
há de ficar vazia.
agora eu tô por fora
e não tô prosa
nem poesia.

Cairo Trindade

Vate em Transe

poema só se faz poesia
se emitir mensagem
se tiver magia
se for viagem

(o poema não é um monte
de palavras vomitadas:
é um vírus visceral
revolucionário)

e um poeta só será poeta
se for fundo, inteiro, intenso
e viver sempre entre
a vertigem e a voragem

Cairo Trindade

quintanar

nada mais dura
tudo é pressa pura

tudo se acaba
se perde:
as pedras prédios impérios

só o que perdura
são as nuvens
o arco-íris e os vaga-lumes
das noites de primavera

o mais é literatura

Cairo Trindade

Tomografia

ninguém imagina
que sou deprê, tenso,
e trago uma dor
constante, no peito.

ninguém desconfia
que sofro de insônia,
que sou muito louco
de excesso de sonho.

ninguém acredita
que eu guardo uma surda
tristeza, lá dentro.
tão forte, tão funda.

porque eu levo um riso
debochando sempre
do que me tortura

e bem escondidas
de mim e do mundo
as marcas das feridas

e das fraturas.

Cairo Trindade

In Extremis

Quero que venhas
cheia de desejos
com a alma nua
a me cobrir de beijos.

Quero que entres plena
tragas mil carícias
sede por lascívias
fome de prazer.

Quero que chegues
como quem vai matar.
E que fiques
como quem vai morrer.

Cairo Trindade

Pequeno gorjeio

para Octávio Paz


Canta a passarada
e não sabe o que canta.
Tudo o que conta
é a sua garganta.

Canta a passarada
sem porquê, nem por quem.
É seu canto, mais nada,
e tudo bem.

Canta passarada
de graça, na boa.
Só ouve quem vive.
E quem voa.

Cairo Trindade

Pileque de palavras

entro no poema sem pedir licença
sem medir limites – livre e sem pudor
entro de cabeça entro inteiro dentro

desnudo e em espasmo mergulho me perco
me afogo e me engasgo – susto transe surto
quase sofrimento quase quase orgasmo

saio do poema como quem renasce
tonto e muito louco – quase sangro sempre
quase sempre gozo y sempre morro um pouco

Cairo Trindade

Labirinto

preso a meu corpo preso a meu peso
preso a meu porto - meu endereço

preso a meu nome preso ao presente
a meu telefone - meu desespero

preso a meu ego preso a meu preço
ao que carrego e ao que careço

preso aos pesares preso aos prazeres
preso ao prosaico a pressões preconceitos

preso a prazos horários agenda
conta bancária - quanta corrente

preso a números e documentos
preso ao desprezo que sinto por eles

detento de tantos, exilado em mim mesmo
sou refém e carcereiro

tenho as chaves e as algemas
e entre grades que eu invento

me liberto
no poema

Cairo Trindade